Por Eduardo Salgado
EXAME O economista britânico Martin Wolf, de 61 anos, tem uma trajetória profissional fora do comum. Formado em economia pela Universidade de Oxford, Wolf começou sua carreira no Banco Mundial e, em poucos anos, chegou ao cargo de economista sênior. Em 1987, aos 41 anos, decidiu dar uma guinada profissional e aceitou a proposta para trabalhar no jornal Financial Times. Desde então, construiu uma reputação sem igual no jornalismo econômico como um dos colunistas de maior repercussão mundial. Wolf escreve seis artigos mensais sobre os mais variados temas da atualidade, nos quais alia precisão acadêmica a senso jornalístico. Seu último livro, Why Globalization Works ("Por que a globalização funciona", numa tradução livre), lançado em 2004, foi considerado pela revista The Economist uma das melhores interpretações do momento atual da economia mundial. Nos últimos anos, o conjunto de sua obra lhe rendeu os títulos de doutor honoris causa da renomada London School of Economics e da Universidade de Nottingham. Casado há 37 anos e pai de três filhos, Wolf vive em Londres, de onde concedeu por telefone a seguinte entrevista a EXAME.
Em 1987, quando a Bolsa de Valores de Nova York teve sua "segunda-feira negra", muitos analistas disseram que estávamos prestes a ter uma crise no capitalismo, o que, vemos hoje, não aconteceu. Em 1997, os mesmos críticos culparam a globalização pela crise asiática e fizeram previsões catastróficas, que mais uma vez não se materializaram. Em 2000, a situação se repetiu. Afinal, a globalização transformou o mundo num lugar menos vulnerável?
Estou razoavelmente certo de que a crise atual não é a que vai acabar com o capitalismo. Afinal, nem mesmo a da década de 30 conseguiu isso. Tudo é possível -- só Deus sabe --, mas acho que podemos ignorar essa possibilidade. A crise atual certamente não será uma enorme reviravolta que afetará profundamente as possibilidades da economia mundial como um todo.
Quais serão seus efeitos?
Ela será muito debilitante para os Estados Unidos por algum tempo. Como é uma crise no sistema de crédito e no principal sistema financeiro do mundo, é bem diferente das que tivemos desde o final dos anos 80. De certo modo, é bem parecida com a japonesa, devido ao tipo de instituição envolvida e por estar ligada à queda do valor das casas, o que afeta muitas pessoas. Nesse sentido, será uma crise financeira mais séria e mais longa para os Estados Unidos e outros países desenvolvidos do que as que tivemos nos últimos 20 e poucos anos. Por isso, é provável que provoque mudanças no marco regulatório do sistema financeiro.
O senhor chega a prever crescimento negativo nos Estados Unidos?
Crescimento negativo é algo muito raro em economias dinâmicas. De qualquer forma, a situação já será grave caso tenhamos dois ou três anos em que a demanda doméstica nos Estados Unidos cresça mais lentamente do que a produção potencial. E acho que isso é possível se os americanos começarem a economizar mais. Afinal, o consumo lá representa cerca de 70% da demanda. Isso é exatamente o que aconteceu no Japão nos anos 90. Houve grande perda de riqueza porque o preço dos imóveis despencou e isso afetou a expansão de crédito.
Nesse sentido, quais serão os efeitos desta crise americana para a economia global?
Países como o México e o Canadá, muito ligados comercialmente aos Estados Unidos, provavelmente serão mais afetados. Os efeitos secundários, provocados pela falência no sistema de crédito, deverão afetar os bancos europeus, que serão mais cuidadosos a partir de agora. Isso trará conseqüências para a economia européia, mas é pouco provável que afete muito os países asiáticos.
Pelo jeito, o senhor é partidário da tese do descolamento da economia americana da mundial...
Estamos caminhando para um mundo no qual a importância dos Estados Unidos como poder comercial e fonte de demanda no sistema de comércio mundial será fortemente reduzida. As exportações de mercadorias da China agora são tão grandes quanto as dos Estados Unidos. As importações dos chineses já são equivalentes a pelo menos dois terços das americanas. Estamos claramente mudando para um mundo no qual outros poderes contam muito, contam especificamente no mercado de commodities. Ou pelo menos a China conta. E esses países são também fortemente independentes dos Estados Unidos do ponto de vista financeiro. Portanto, por mais que seja impossível um descolamento, o impacto de uma redução na economia americana será muito menor do que foi no início da década de 90 ou até mesmo no início desta década. É nesse sentido que acho que o momento atual pode ser descrito como uma crise americana -- e também uma crise para o novo capitalismo financeiro.
Mas a China não depende de suas exportações para o mercado americano?
As exportações diretas da China para os Estados Unidos correspondem a 8% do PIB chinês. A maior parte desses produtos só pode ser comprada da China porque não há substitutos fáceis. Mas digamos que o cenário mais pessimista possível se materialize e as exportações chinesas para os Estados Unidos caiam 25% em um ano. Ainda assim, o PIB chinês teria queda de 2 pontos percentuais, de 11% para 9% ao ano, o que não me parece um desastre. Essa seria a perda direta máxima. Além do mais, é importante lembrar que a China tem um imenso saldo comercial e de conta corrente e imensas reservas em moeda estrangeira. Portanto, o país pode perder exportações sem nem chegar perto do equilíbrio na balança comercial. Se o governo chinês decidir crescer o gasto em outras coisas que aumentem suas importações, não haverá problema. A idéia de que a redução na economia dos Estados Unidos vai destruir a economia da China me parece muito improvável.
Pelo que o senhor está dizendo, os exportadores brasileiros de commodities podem dormir tranqüilos.
É importante lembrar que os preços das commodities estão muito elevados e que, por isso, caso haja uma significativa redução na demanda americana, já que o país continua representando 25% ou 30% da economia mundial, haverá um efeito indireto nos preços. Entretanto, pela primeira vez desde a Revolução Industrial há países em desenvolvimento com demanda por commodities maior do que a de países desenvolvidos. Somente uma depressão nos Estados Unidos, algo que o Fed -- o banco central americano -- decidiu que não vai permitir que aconteça, poderá afetar os exportadores de commodities que são fortemente ligados aos países asiáticos. Sim, os brasileiros podem relaxar.
Fonte: Exame